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A vida na ponta dos pés

por Carmen Virgínia

16 de junho de 2021

A vida na ponta dos pés

Aos vinte e um anos fui diagnosticada com artrose – era enorme a dor nas articulações das mãos e aos trinta anos a dor se espalhou também para a coluna.

Segundo o médico, ele nada poderia fazer para deter a doença: era meu o poder de retardar os seus efeitos – não me receitou remédios. Mas muito sabiamente, fez algumas recomendações: manter-me magra (fácil), não fumar (facílimo), não ingerir bebidas alcoólicas – nesta época eu não só não gostava de beber como tinha raiva de quem bebia, e fazer cooper – nome de “caminhada” naqueles idos da década de 70.

Com o poder me atribuído de ser a única responsável pelo meu bem estar físico, eu não podia dividir a reponsabilidade e tampouco transferir o cuidado com a minha própria saúde para outrem - então, o sensato era seguir os conselhos médicos.

Como diz o meu segundo marido – puta que pariu! Difícil demais! Porque o único item das recomendações que eu não dominava era justamente o meu ponto fraco - meu pai me mandava constantemente fazer ginástica, mas eu detestava as aulas de educação física, o vôlei, a queimada, que minhas colegas prazerosamente se entregavam nos recreios e até mesmo depois das aulas, para mim eram castigos. A única atividade física que me atraia era a natação, mas com algumas poucas piscinas na cidade, sobravam os córregos das redondezas, peremptoriamente proibidos pela minha mãe - proibição driblada por mim com relativa facilidade.

Mas já se falava em praticar atividades físicas, algum esporte como terapia, mas ainda muito incipiente e a minha teimosia em nadar onde corresse uma aguinha me salvou por um bom tempo.

Mas com a doença se espalhando, a natação praticada esporadicamente não mais trazia alívio para tanta dor, eu tinha que incorporar à minha rotina uma atividade física e por ser a mais viável, a caminhada entrou na minha vida.

Caminhar era remédio, o remédio que eu precisava e não tinha contra indicações. Pelo contrário, servia na exata medida para uma pessoa indisciplinada como eu – sem prescrição de dose, sem horário marcado, sem local fixo, e ainda com custo zero. E me tornei uma caminheira! Em redor da praça, nas ruas e avenidas, nos parques, nas fazendas – é só calçar o tênis, que eu também detesto, e sair, por uma hora – tempo que eu estipulei para mim, baseado em algumas leituras científicas, caminhando...

Já se passaram mais de quarenta anos desse diagnóstico, e mais de trinta anos que comecei minha vida de caminheira.

Conheço pontos não turísticos das cidades que visito porque levanto cedo, antes do café da manhã do hotel, e saio andando pelas redondezas. É uma delícia! O amanhecer é sempre lindo, mesmo nublado, me desperta para a vida, para quem sou e para quem vive ali, naqueles locais. É um exercício de gratidão, ver tanta beleza construída por tantas mãos, mantida por outras tantas mãos e eu ali, encantada, me preparando para mais um dia de turista.

Em casa, não tenho horário – saio à hora que dá. E sempre me surpreendo com a beleza do nascer e pôr do sol, me extasio com o vento batendo no meu rosto, sinto verdadeiro amor pelas goiabeiras, amoreiras, jaqueiras, que vou encontrando pelo caminho, fico revoltada com os buracos nas ruas abertos pela chuva, das calçadas mal cuidadas, me emociono ao ler na placa que a rua tem o nome de um velho amigo que já virou estrela, gosto de cruzar com os outros caminheiros e convicta, mesmo com a doença tomando todo o meu corpo, e as dores serem cada dia mais intensas, vou continuar caminhando...

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