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A dona sou eu

por Carmen Naves

03 de junho de 2020

A dona sou eu

De longe se avista um colorido gritante. O muro de tijolinhos vermelho fica escondido pelos ramos das buganvílias, que entrelaçados misturam suas cores, e enfeita a rua de asfalto e de semáforo de três tempos.

A senhora, com uma sacola de feira em uma das mãos, anda mais devagar e se identifica com as cores das flores debruçadas sobre o cimento armado. O rosa a faz lembrar sua filha, quando criança – a roupinha era rosa, o sapato, a fita do cabelo e até mesmo o vestido da boneca era cor-de-rosa. Agora adulta, morando em outra cidade, mal se falam ao telefone – a filha sempre liga num tal de skype, mas, assim que inicia a conversa, já cai o sinal, e o assunto que nem bem tinha começado fica para depois. O roxo a leva de volta à sua infância – de mãos dadas com sua avó materna indo para a igreja - o tempo é de Quaresma, e toda a igreja está adornada com a cor da Paixão de Cristo.

– Lembranças tão boas, que quase me esqueci - as compras são para fazer o almoço. Mas queria saber quem é a dona dessa casa e pedir uma mudinha dessa trepadeira. Fica para outro dia...

O homem, vestido de terno e uma bela pasta de couro marrom atravessada no tórax dirigindo-se para a estação do metrô, diante da exuberância das cores para, e diz em voz alta:

– Este tom grená é a cor preferida da minha ex-namorada. Para onde estou indo, quero ir? Ah! Sou advogado, tenho uma audiência no centro da cidade. Já estou atrasado, e lembranças adormecidas me param no meio da rua e ainda quase sou atropelado! Lembro então que me casei com a Lívia por ela estar grávida, mas amava de verdade era a Sueli. De quem será esta casa, com flores capazes de fazer a vida voltar no tempo?

O rapaz, na moto, para em frente às buganvílias e começa a chorar. Sua mãe morreu num acidente de carro alguns meses atrás e até hoje ele não tinha conseguido chorar de verdade – não tinha tido tempo! Os muitos contatos nas redes sociais o deixavam atribulado todo o dia e parte da noite, e de manhã precisava levantar para fazer as entregas do jornal.

– Por um lado, até que foi bom, mas agora apenas olhar para estas flores me faz sentir novamente vivo. Minha mãe vai adorar quando eu chegar com um ramo dessa flor amarela sua cor preferida, e colocar no seu túmulo. Quem será a dona dessa casa, com flores capazes de fazer viver quem se dava por morto? Na próxima entrega vou bater a campainha...

A moça de roupa coladinha ao corpo, andar insinuante, distraída se depara com o muro de flores e embasbaca. Não sabe qual cor é a mais bonita, nem se conseguiria separar uma das outras. O todo, flores coloridas, grita ao seu coração. E a figura do seu pai sorrindo sem dentes lhe aperta o peito.

– Meu tempo escasso, com tanto trabalho, idas à academia, as compras, as viagens e agora, aqui no meio dessa rua, ao ver estas buganvílias floridas, senti saudades do meu pai e de mim - que já nem sei mais quem sou. Ele cultivava rosas no nosso jardim e, desde que mamãe morreu, na Casa dos Idosos onde foi morar, ele joga dama com seus novos amigos e lê os jornais. Deixou a jardinagem de lado. Preciso saber quem é a dona dessa casa para pedir uma muda dessa trepadeira.

- Quem sabe tiro uma foto dessas flores para colocar no mural do Lar...

Ao longe aparece uma pessoa, de andar lento, positivo, que ao chegar perto podemos ver ser uma senhora sem idade – com o avanço da tecnologia não conseguimos mais definir idades, principalmente de mulheres - com alguma juventude no corpo. Como os outros, para, e fica a olhar para o muro. E estupidamente se vira a falar sozinha:

– Essa trepadeira vai acabar com o muro; sua base já deve estar abalada. E essas flores, se misturaram todas, não sei mais qual é qual. O paisagismo que me custou caro, não existe mais. O jardineiro faz um trabalho muito ruim! Vou dar cabo nessa montoeira hoje mesmo!

Entrando estabanada no portão do muro enfeitado pelas buganvílias, é abordada por um transeunte, que muito feliz se dirige a ela:

– Este muro é o mais belo da cidade. A senhora mora aqui?

– Sim. A dona sou eu.

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