Anotações sobre a leitura de Uma Furtiva Lágrima – Nélida Pinon
por Rosângela Vilela Pedro
06 de abril de 2021
Nélida Pinon, nascida em maio de 1937, é uma escritora e intelectual brasileira de altíssimo quilate. Ocupa a cadeira número 30 da Academia Brasileira de Letras desde 1989, antes ocupada por Aurélio Buarque de Holanda. Em 1996-1997 tornou-se a primeira mulher a presidir a Instituição. Esta presidência teve um particular brilho, pois no ano de 1997 comemorou-se o primeiro centenário da Academia.
Produziu uma vasta obra literária cuja qualidade a fez conhecida e reconhecida nacional e internacionalmente. Recebeu diversos prêmios, como o prêmio Príncipe das Astúrias das Letras em 2005. Nesta ocasião concorreu com os renomados escritores americanos Paul Auster e Philip Roth e o israelense Amoz Oz.
Suas experiências literárias também a levaram à cátedra na Universidade de Miami entre 1990 a 1996.
Em 2015 recebeu uma sentença de morte por parte de seu oncologista: 6 meses a 1 ano de vida.
Decide, então, escrever Uma Furtiva Lágrima como um preparo para esta passagem. Mesmo após saber que o diagnóstico foi errôneo, continua a escrever o livro, lançando-o em 2017. O livro é escrito em uma linguagem poética.
Dedica estes escritos ao seu cão Gravetinho, que faleceu no mesmo ano da publicação do livro. Em uma entrevista dada pela autora, essa disse que tinha alargado sua humanidade com a animalidade do seu cão.
Na última seção, escreve as seguintes palavras a este grande companheiro.
“Gravetinho morreu nesta madrugada do dia 5 de julho, quinta feira, 2017. Fazia frio e eu o abracei pedindo para que não me deixasse. Ele esperou que eu chegasse para as despedidas de uma vida em comum, partilhada ao longo de onze anos.
Repeti várias vezes que não me deixasse. Implorei, sim, que ficasse. Ele importava mais que as glórias literárias, que certos bens que não me davam crédito. Eu já sabia que o amor é tudo. Ele era tanto. Era a alegria da casa.” (pg 317)
Descendente de galegos, seu nome é um anagrama de Daniel, nome do avô. Faz muitas referências à origem da família no livro. Sobre o avô destaca:
“Com o avô Daniel aperfeiçoei o paladar e tudo mais que dissesse respeito às delícias inerentes à condição masculina (...) durante almoço que me oferecia grande número de intelectuais mexicanos (...) mencionou a figura do avô Daniel, que, segundo ouvira, inspirara o personagem Madruga, do romance A República dos Sonhos.
Emocionei-me por trazer à cena a figura relevante de Daniel, sobre quem me expandi. E tanto que percebi, pela primeira vez, como ele se esmerara na minha educação relativa a vinhos, à comida, aos charutos havanos” (pgs 119 e 120)
Também com os pais teve uma educação primorosa que contribuiu para a sua formação intelectual e artística.
“Cresci, pois, engolfada nas tradições que emanam dos livros que transitavam por minha imaginação, enquanto a mãe me introduzia ao mundo teatral, ainda ao balé, à ópera, à música, estas artes aprendidas no Theatro Municipal, que eu frequentava com assiduidade. (...)
Inquieta pela trajetória do mundo, esmerava-me em visitar diversos séculos. Lia com afinco jornais e revistas. O pai abrira uma conta na Livraria Freitas Bastos sem desconfiar de minhas escolhas, nunca me fiscalizou. Era homem galante, ficava horas em pé encostado no poste da esquina da Avenida Rio Branco com Almirante Barroso, aguardando que a filha, entretida com a ópera, saísse do Theatro, sem reclamar de eventual atraso. Só perguntava “Gostou, filha?”
(...)
Cabia a mãe convocar-me para a realidade. (...) E a uma amiga que a criticou por levar menina aos museus onde se viam nus artísticos, ela reagiu: a filha devia olhar o mundo sem preconceito.
(...) fazia os deveres escolares ouvindo na rádio Mozart, Beethoven, Wagner, Verdi. Nos livros de arte embevecia-me com Velázques, Vermeer. Enfim um caleidoscópio que ainda hoje impulsiona meu trânsito pelas artes.” (pgs 77, 78 e 79)
Este caleidoscópio de conhecimento e cultura talvez a faça ser considerada de difícil leitura, pois seus escritos se referem com muita intimidade a esta quimera de conhecimento, que não é bagagem de muitos, como destaca Nélida na seção “Rio, do Brasil”:
“O Rio é belo, sem dúvida, mas não lê. Quase todos igualam-se na escassez de conhecimento. Não dispõem de um arsenal de saberes que apure os seus direitos cidadãos.” (pg 201).
É com este cabedal de conhecimento e muita poesia que Nélida passeia pelos mais variados temas neste livro de recordações, de síntese da sua vida. Na seção “A Fábula”, resume assim a experiência que teve ao escrever este livro:
“Sou feita de aventuras, de sentimentos, do desassombro de ter vivido. O drama, aliás, de constatar que cada qual é um indivíduo rigorosamente singular em meio à multidão.
Alojo no texto os pormenores da minha vida como quem desterra Troia a fim de saber se existiu de fato a cidade de Príamo. A cidade que desterrei sou eu mesma”. (pgs 244 e 245).
Por fim gostaria de destacar algumas frases e sentenças deste compêndio que encantam pela sua poesia, pela clareza nas definições, por conseguir expor de forma tão profunda, os sentimentos e paixões do humano.
Sobre ser mulher:
“A mulher é um tema eterno.(...)
Isto dito, é fácil concluir que nunca foi fácil ser mulher, corresponder aos ideais que sua figura lírica, poética, corrupta, dama do mal, diva da luxúria, guardiã do lar, sempre inspirou.
Ao frequentar as fascinantes páginas da história pregressa, destaco as épocas em que era impossível à mulher alimentar uma mínima réstia de sonho que lhe desse esperança de ser feliz.” (pgs 192 e 193)
Sobre o amor:
“O amor é e será sempre teu melhor gesto na terra. O único capaz de projetar luz sobre esta precária existência humana.” (pg 19)
“O mal do amor é cobiçar a perfeição. De ambição ilimitada, a tribo humana o idealiza, aspira a supervisionar o código amoroso e dele extrair resultados favoráveis.”(pg 246)
Sobre o ciúme:
O ciúme, entre tantos, é um veneno. Ao emergir assalta-nos, desgoverna-nos sem explicações.
(...)
Em sua invencível rota de destruição, o ciúme gera atos que se confundem com o inexplicável e ultrapassam o limite contra o qual não há defesa.
Otelo matou sem piedade.” (pgs 252 e 252)
Sobre a emoção:
“Se um dia Deus me privar da emoção, apronto-me a comprá-la. Depositarei a cada dia no pires da vida uma moeda com a esperança de que se converta em uma emoção ainda que crepuscular.
Careço de surpresas benignas, que não me asfixiem. Sem revelações emocionantes, eu anteciparia minha morte.” (pg 155)
Sobre a solidão:
“Falta-me a vocação para ser triste. Tenho riso fácil. No entanto, sem aparentar, tenho feroz vocação para a solidão, que é o lugar metafísico onde melhor me encontro”. (pg 24)
“Sou solitária como todos. Uma sina universal. A solidão de cada qual tem uma história. Um enredo vagabundo cujo epílogo amargura a quem o narra.” (pg 158)
Sobre o sofrimento
“Eu, porém, contrária aos santos que se beneficiam com o martírio, não nasci para o sofrimento, mesmo sob a promessa do reino dos céus. Por mais leves que sejam as penas, não as quero. Nada empana o brilho natural da vida.”. (pg 278)
Sobre o eterno e o humano:
Sucumbo diante do conceito da eternidade que é inclemente. Afinal o eterno é o contrário da minha pobre condição. As ocorrências humanas, contudo, me fascinam, trazem em seu bojo as sementes do bem e do mal.” (pg 95)
Sobre envelhecer:
“Envelheço com rapidez e não contrario esta hipótese. De nada adiantaria.” (pg 145)
“Somos vítimas do tempo que nos espreita. A ele lhe cedemos a vida quando é chegada a hora.
(...)
Não somos sábios em lidar com os anos. Damo-nos ao luxo de desperdiçá-los. De nos crermos donos deles, sem jamais pensar que eles fabricam a cada dia a nossa morte. Na verdade, somos uns insensatos.” (pg 204)
Sobre a morte:
“Não há poesia na morte.” (pg 10)
Sobre estar viva:
“Tento manter aceso o gosto de estar viva. Corroborar na crença de que a despeito dos sobressaltos, dos arrepios da paixão agônica, da perplexidade diante da morte próxima, faço jus à existência.” (pg 156)
“Importa-me seguir desenvolvendo minha capacidade de viver.” (pg 172)
Sobre a beleza:
“A beleza é vertiginosa. Abala convicções, lança-nos à aventura que provém da estética em ação. (...)
Pessoalmente a beleza, mesmo que grotesca, me emociona. (...)
A beleza prega o mistério e é uma bendição.” (pg 20)
Sobre o cotidiano:
“A burocracia da rotina nos espreita. Desvaloriza os sentimentos que requerem liberdade para vicejar. E ao encarcerar quem somos, submetemo-nos a uma repetição sem fim, dificulta o caminho da arte. Tolhe as ramificações e os desvarios que espreitam a vida.” (pg 230)
“E repito crédula, que a vida requer riscos, sonhos, fracassos.” (pg 152)
“Todos os dias alguém bate simbolicamente à sua porta, convocando-nos a desistir. Seu dever é rebater com um rotundo não.” (pg 221)
Sobre a liberdade:
“Cedo manifestei certa vocação que julguei ao meu alcance. Queria traduzir a vida por meio das aventuras.
(...)
Até finalmente entender que, se eu pretendesse pleitear uma vida à altura das minhas fantasias, devia contaminar-me com o vírus da liberdade. E jurar, ante os deuses, que não aceitaria a existência acanhada.” (pgs 220 e 221)
“Desde a mais tenra idade exigi que os livros me desalojassem do eixo da alma, este território insuficiente para as minhas inquietações.” (pg 183)
Sobre Deus:
“Ignoro o rosto de Deus. Sua mirada atenta e devoradora. Algumas vezes quis-lhe encaminhar a palavra, que é matéria humana, mas falhei.
(...)
Sofro, pois, o peso da frustração, de saber que não me pertence o verbo da lavra divina. Ignoro, portanto, como me dirigir ao senhor.” (pg 167)
Sobre viagens:
“O lar é insuficiente. Convém abandonar os limites espasmódicos do cotidiano. Viajar como quem sai da sua cidade e visita por milagre o medievo, o ápice do gótico, as instâncias civilizatórias sem as quais o cérebro é pétreo (...)
Cada viagem impulsiona o indivíduo a crescer”. (Pgs 52 e 53).
“A cada travessia atlântica um alvoroço afetava as noções que eu tinha da história.... Foi quando tive a sensação de que viajar era mais que conhecer o mundo, era uma prática a ensejar que eu me conhecesse nos limites do possível.” (pg 69).
“O melhor da viagem é prolonga-la através dos recursos da memória. Se possível enxergar sobre os feitos vividos e fazer crer aos demais que qualquer um é herói tão logo deixa a casa e põe o pé na estrada.” (pg 184)