Tempos estranhos
por Gecy Belmonte Parente
02 de setembro de 2020
Adam S. acordou, levantou e abriu a janela para ver como estava o dia. Precisava se apressar para tomar o café e dar a corrida no Ibirapuera a cerca de oito quadras de casa. Retornou à janela para dar mais uma olhada na rua estranhamente quieta para um sábado. A feira livre que funcionava na outra quadra inexistia. Estranho, pensou, deve ter havido algum problema, os vendedores de orgânicos não costumam falhar. No edifício em frente a maioria das persianas estava fechada. Apenas uma mulher no segundo andar lia o jornal em uma cadeira na sacada.
Quando chegou na rua alongou-se usando o gradil da confeitaria Doce Pecado e começou a caminhar em direção ao parque. Um homem passeando com o cachorro cobria o rosto com um tipo de escudo transparente que ele nunca tinha visto e, ao vê-lo, atravessou a calçada. As lojas ainda não estavam abertas. A cidade toda resolveu dormir até tarde hoje, pensou, começando a acreditar que alguma coisa anormal havia acontecido. Passava a maior parte isolado em um sítio na periferia e quando vinha à cidade saia muito pouco de casa. Abolira a televisão e a internet porque as desgraças eram tantas que se deprimia e, como escrivão aposentado, já conhecia o bastante da alma humana para não se surpreender com mais nada. Viúvo, sem filhos, gastava o tempo lendo e escrevendo romances policiais que esperava publicar um dia quando um editor sensível reconhecesse seu talento.
Havia caminhado pouco mais de duas quadras quando foi abordado por um carro da guarda metropolitana. Os dois policiais usavam máscaras e luvas e ele pensou que o governo, enfim, começara a se preocupar com a saúde dos seus servidores públicos em uma cidade tão poluída como São Paulo. O guarda pediu um documento de identificação e perguntou onde ele ia.
− O parque está fechado, o senhor não sabe? Todos os parques da cidade estão interditados. O senhor não vê televisão, não escuta rádio? − Falou, com o tom de voz típico de quem está gostando de exercer a autoridade que lhe foi repassada.
Adam S ensaiou uma pergunta, mas o policial não deu tempo para que a formulasse.
− Volte para casa. E lembre: só pode sair de casa para ir ao supermercado, à farmácia, ao banco e ao médico. E qualquer aglomeração está proibida. É a regra. E quem não cumprir, a partir da próxima semana pagará uma multa e correrá o risco de ser preso. Por hora estamos apenas advertindo.
Adam S ficou pasmo e dos seus bem conservados setenta anos, a base de atividade física regular e alimentação saudável, achou que havia dormido e acordado nos anos setenta, quando a ditadura militar proibia qualquer junção de pessoas na rua e todo cidadão suspeito de ser comunista podia ser preso, morto ou desaparecer sem deixar vestígio. Resolveu não contestar e, duvidando da própria sanidade, voltou para casa, até porque o carro da polícia rodava lento e o guarda continuava a observá-lo pelo retrovisor.
Entrou no prédio e não viu o zelador. Era normal, os moradores tinham a tag magnética para abrir o portão e ele devia estar recolhendo o lixo. Acionou o elevador e sentiu o cheiro forte de água sanitária misturada com perfume barato. Chegou ao sétimo andar e quando colocou a chave na fechadura uma voz metálica falou com toda a clareza:
− Tire os tênis, ponha a roupa para lavar e vá tomar banho imediatamente. Não tente enganar, você está sendo filmado.
Adam S olhou para os lados tentando identificar de onde vinha a voz, não havia ninguém. Parou um instante os batimentos cardíacos acima de cem, com certeza. Não era medroso, mas aquela voz vinda do além, o deixava arrepiado.
− O que você está esperando? Lembre, sair de casa só para a farmácia, o médico e o supermercado. E não esqueça de comprar máscaras e álcool gel.
As mãos tremiam tanto que ele derrubou a chave e não conseguia desamarrar os Adidas sujos.
− Apresse-se, tudo está contaminado − , advertiu a voz, infiltrando-se com ele no apartamento.