Canastrão
por Roberta Maria Pinheiro Stein Pena
09 de junho de 2020
Quando penso em minha família paterna, fico feliz em perceber que é uma família de tradição. Não tradições fixas e inflexíveis, mas hábitos que surtiram um efeito bom e que quisemos preservar e que, pouco a pouco foram se tornando parte de nossa identidade. Minha família gosta de relembrar os antepassados e saber de todas as relações entre irmãos, primos, tios, avós, agregados. Me lembro de uma brincadeira que meu pai fazia comigo quando eu era pequena, em que me dizia o nome de um conhecido e de uma forma complicada, fazendo uma relação de parentesco, me perguntava de quem ele estava falando: “Beta, quem é a filha do filho caçula da mãe do seu Tio Otávio”? E depois de alguns minutos com meus pensamentos dando nó na cabeça, eu pulava em descoberta: “Eu, uai!” Minha avó sempre gostou de contar histórias de sua época de juventude, de magistério, mas principalmente de seus pais e avós, frisando sua descendência alemã e relembrando algumas palavras e brincadeiras que eles a ensinaram.
A tradição da família, portanto, já temos. Nesse cenário, acrescentamos costumes que são a marca registrada da casa da minha avó: bebida, comida e baralho. Não houve uma vez sequer que encontrei uma mesa de lanche simples na casa de minha avó – pães de queijo macios e graúdos assados na hora, biscoitos calcanhar, queijo fresquinho e o famoso e adorado “bolo de nozes”. O bolo de nozes se tornou um patrimônio de nossa família – que minha avó faz sozinha até hoje, todas as vezes que suas netas e netos anunciam que vão chegar. Um bolo de massa simples, mas com o diferencial de um recheio de leite condensado e nozes, e uma farofa doce no topo, com um fundinho de canela e pedacinhos crocantes de nozes misturada na manteiga. Além disso, as reuniões sempre pedem um aperitivo. A matriarca guia a tradição e nunca recusa uma boa taça de vinho para selar os momentos felizes. As netas, que também apreciam um brinde, fazem graça umas das outras, chamando ironicamente pelo nome da avó a prima que tem um apreço maior pela bebida. Em situações de mais tempo livre – como quando passamos alguns dias na fazenda em Romaria – o baralho sempre está presente. Minha tia diz “Todo mundo da nossa família gosta de jogar” – além de ser verdade, acrescento que todo mundo joga bem. Desde pequena vi os mais velhos jogando o jogo de cartas “Buraco”, e esse aprendi logo no início da minha adolescência. Este ano, entretanto, comecei a perceber que esse jogo que eu sabia era para iniciantes - o que gerava empolgação, concentração e compromisso mesmo entre os mais velhos, era um tal de “Canastrão”.
Aproveitei a oportunidade durante a quarentena para entrar de cabeça em mais esse costume da minha família. “Pai, esse jogo é difícil?” Eu perguntava. Pois parecia. Era um tal de três preto que tranca, de três vermelho que vale 100 pontos, de trinca de Reis... Apesar de falarem que parecia com Buraco, eu tinha a impressão que era bem mais complicado. Mas acabei aprendendo. Uma aula teórica no começo, com mais umas rodadas sapeando o jogo daqueles que já dominavam e saí daquela fase de leiga. Nesse período de isolamento, passamos uma temporada na fazenda e lá foi o ambiente perfeito para treinar o novo jogo: horas de tempo livre e muitas pessoas animadas para jogar. Além de tudo tive sorte de aprender estratégias preciosas com uma das melhores jogadoras de Canastrão de Monte Carmelo -Dona Etônia Paranhos – que com seu histórico de professora me ajudou a ser uma aluna aplicada no canastrão. No início ela me ajudou com dicas básicas do jogo, me explicava porque alguma ação estava certa ou errada durante a partida, e o que eu deveria fazer em cada situação. Com suas dicas, logo fui me aprimorando até que me tornei sua parceira de jogo. Quanta responsabilidade! Eu não podia dar bobeira, nem “mastigar vento” como meu irmão costuma falar. Mas naquele ponto, já havia aprendido muito com suas dicas e estava pronta para jogar com os iguais.
Me lembro de várias partidas incríveis que aconteceram nesses tempos. De um momento de total desilusão e irritação com o jogo à compra de um Curingão, que mudava as perspectivas e possibilitava uma reviravolta. Ou ao contrário, quando começávamos o jogo com três três vermelhos – somando possíveis trezentos pontos, se alguma canastra fosse efetivada – e nada dela vir. E o oponente dizia: Quanta dívida! Eu olhava para o rosto de Etônia, como confiante que sua experiência ia dar um jeito na situação. Mas ela com os lábios finos cerrados, não parecia ter esperanças. “Se eu tivesse um coringuinha...” ela dizia. E eu encarava minha mão, com diversos dois – os coringuinhas que ela queria -, mas nenhum jogo para encaixá-los. Ai que angústia! Uma olhada de relance no caderninho estampado de Etônia, antigo de tantas partidas registradas, e vejo “Nós” e “Elas”, 800 a 1500 pontos – “Que lavada estamos tomando”, penso. De repente, a pessoa da direita deixa aquela carta, aquela única que me permite encaixar no meu jogo e pegar todas as cartas do lixo. Meu semblante muda – consegui nos salvar – eu olho para Etônia com entusiasmo e alegria: “Etônia, peguei!”E ela aprova incrédula a jogada. Quem joga Canastrão sabe, que pegar um lixo acumulado em certo ponto do jogo é uma conquista: muitas vezes saem muitas canastras, jogos se abrem para ajudar o parceiro a descer as cartas e nisso tudo, muitos pontos vão sendo feitos. Eu rio de alívio e faço deboche: “Podem esperar calmos eu descer todos esses pontos”!. Os oponentes se irritam, mas logo vem um cafezinho preto com alguma quitanda para amenizar o clima tenso. Nessa, já se passaram duas horas. Finaliza a partida e estamos vulneráveis. Eu pego as cartas para embaralhar e jogando conversa fora, me demoro ali. Só percebo quanto embaralhei quando Etônia me dá o toque: “Chega de embaralhar menina, estamos VUL”! E começa tudo de novo, agora as esperanças renovadas de que podemos ganhar o jogo: “Agora vocês vão perder o rumo de casa”.
Eram tantas horas de jogo que alguns ficavam até um pouco abalados. Um episódio que causou horas de risada foi uma partida entre meu pai e seu irmão, com o caseiro da fazenda e mais um parceiro. Com o passar das horas, todos já estavam cansados, mas o jogo intenso – como um imã – não permitia que ninguém se afastasse da mesa. Como era de se esperar, alguém finalmente "bateu” e ganhou. Para uns, decepção para outros, “Até que enfim”. Recolhem-se as cartas, guardam os baralhos, o forro e as bolachas – amanhã tem mais. Fato é que o jogo mexeu tanto com meu tio, que em meio aquela madrugada, ele acordou pensando naquela última jogada antes do bate. “Mas pera aí, aquilo não valia”. Matutando sobre as cartas no amanhecer do dia, ele levanta da cama e vai atrás do caseiro que já está de pé no curral, para discutir a jogada – e os dois inconformados passam a concluir que realmente a vitória não foi justa. Essa partida foi discutida por muitos dias seguidos, os oponentes relembrando a sequência de cartas jogadas, os parceiros refutando. E quem estava de fora, só rindo daquela situação cômica, dos três se desgastando naquela discussão sem fim, que não levaria a lugar nenhum.
Quando eu lembro de baralho, sempre me lembro das pessoas queridas com quem joguei nos últimos tempos e dos momentos gostosos que surgem quando estamos numa partida. O jogo nos traz para o momento presente, nos conecta com o parceiro, nos faz pensar e se divertir ao mesmo tempo. Joguei tanto durante essa quarentena, que meus familiares agora sempre me convidam para jogar uma partida quando me veem, já sabendo que não vou negar o convite. Além de tudo, me tornei uma jogadora exigente e com algumas manias, assim como minha mentora Etônia. Às vezes me pego reproduzindo suas falas durante o jogo ou com novas comentários para os outros jogadores para deixar o jogo justo. “Epa, epa! Carta não tem mola! Desceu, tem que ficar na mesa.” E meus companheiros rieem de mim e dizem: “Aprendeu direitinho, hein”. E aprendi mesmo. Não só sobre baralho, mas sobre união, diversão e tradição.