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Madame Marly Brando

por Mario Wilson Pena Costa

02 de junho de 2020

Madame Marly Brando

 

Em toda cidade do interior costumava vir, de vez em quando, os circos, cheios de bichos adestrados e novidades para a cidade. A garotada enlouquecia. Talvez mais ainda os seus pais com a insistência dos filhos para retornarem ao espetáculo em outro dia.

Com um desses circos veio também uma jardineira velha com desenhos mal feitos em sua lataria. Desenharam uma “bela moça” de cintura fina e curvas acentuadas, seios grandes e vestida com maiô de banho, cabelos longos com cachos nas pontas fazendo lembrar uma heroína americana das revistas de quadrinhos daquela época. Ao lado dela, uma jaula com um gorila dentro, de boca aberta com grandes dentes exibindo os seus músculos e a força da “fera”.

Aquilo, por si só, nos fazia sonhar com o desconhecido e com o apelo do carro-de-som que circulava pelas ruas da cidade anunciando os espetáculos diários. Eram muitos durante o dia. O espetáculo se chamava “Metamorfose” - uma mulher que se transformava num horrível monstro.

 Um dia, reunimos quatro ou cinco amigos da praça dos “beija-flor” e rumamos para a pracinha dos patos. La estava ela estacionada – a jardineira do terror. Apenas dois passos, ou melhor, dois degraus, nos separavam daqueles dois mundos: o da ingenuidade de Monte Carmelo e o do medo do que poderia acontecer dentro daquela jardineira.

Meio a hesitações e muita gente se acotovelando do lado de fora para entrar, uns mais desconfiados outros mais corajosos, resolvemos aguardar o próximo espetáculo para ver se saia alguém carregado ou com ferimentos de dentro daquela jardineira. Felizmente ninguém. Só pânico e correria num determinado momento da apresentação. Algumas pessoas voltavam para dentro e outras não ousavam fazer o mesmo. Abandonavam para sempre aquele espetáculo.

Decidimos ver o que acontecia lá dentro para causar tamanha histeria. Ninguém queria subir primeiro. Sempre uns empurravam os outros, até que ganhamos coragem e subimos os dois degraus da jardineira. Na porta de entrada havia apenas uma cortina preta pesada para assegurar o ambiente sombrio do lado de dentro. Ao entrar todos procuravam os bancos mais próximos da porta de saída, para permitir, se fosse o caso, uma escapulida rápida para o lado de fora, como, aliás, se via constantemente a cada apresentação.

Outra cortina preta separava a cabine do condutor da jardineira da sala do espetáculo e os vidros laterais do carro foram substituídos por uma lataria que servia de fundo para a pintura da jardineira e garantia que nenhum raio de luz vindo do exterior atrapalhasse o espetáculo.

Era um casulo perfeito para o medo cuja porta de saída era apenas uma, a mesma da entrada. Estreita e com as regras de segurança típicas dos anos 60 das cidades do interior de Minas Gerais: nenhuma!

Os bancos da jardineira serviam de assentos para o público. As pessoas se sentavam de dois a dois. Os meninos, às vezes, se colocavam de três em cada banco tentando minimizar o medo do local.  Ao fundo do corredor do carro se via o espaço da transformação. Uma jaula de ferro servia para receber a moça que se transformaria num “monstro”. Imaginávamos que aquela grade também servia para proteger aqueles espectadores um tanto desconfiados.

Lá dentro outra coisa me chamava a atenção: o aspecto do apresentador. Um senhor mais velho, barrigudo, com bigode grande e denso, portando o típico traje de apresentador aposentado de circo. Seria ele o responsável para levar o pânico para os seus clientes? Quanto mais pânico, maior seria o sucesso e a bilheteria da temporada.

Ele parecia querer engolir o microfone. Falava sempre em tom mais baixo com o microfone encostado na sua boca. Enquanto ele dava as suas explicações sobre o espetáculo, contava-nos estórias de tragédias ocorridas em apresentações anteriores por onde passara aquele circo. Naquele momento já se podia ouvir a respiração ofegante do seu vizinho de banco. O medo começava ali.

Começava o espetáculo!

O senhor anunciava a jovem moça e a apresentava ao público. Ela aparecia dentro da jaula, não esboçava qualquer reação e ficava imóvel segurando as grades. Não se parecia nem um pouco com a que estava desenhada no exterior, sobretudo pela sua idade mais avançada.

O apresentador continuava:

- Aí está, distinto público, Madame Marly Brando, a única jovem na superfície da terra que tem o poder e a capacidade de transformar em horrível monstro!

Propositadamente, o apresentador ia modificando a entonação e a velocidade da sua voz durante a frase, de forma que, quando chegava ao final, o “horrível monstro” já era dito por ele quase aos gritos.

Começava a transformação.

Aos poucos poderia se ver os pelos do macaco surgindo no corpo daquela mulher imóvel no fundo da jaula.

Naquele momento, o apresentador contava mais algumas estórias horríveis de espetáculos anteriores, algumas culminando com a morte de algum espectador ferido. E o medo só aumentava. Não raro víamos alguém desistindo daquela aventura antes do seu ápice.

E pronto! Concluída a metamorfose lá estava um grande macaco de muito pelo que aos poucos começava a acordar da transformação.

O apresentador, em tons até então moderados, deixava perceber ao público que alguma coisa teria dado errado. Dava a entender que começava um discreto pânico da sua parte e tentava controlar a situação conversando com o “bicho”.

A sua voz ia aumentando e o “monstro” começava a se enfurecer. Ele gritava calma.

- Calma Madame Marly Brando! Calma... Calma... Têm muita criança aqui dentro, calma! Ordenava ele.

Em vão. A “fera” ia se agitando cada vez mais e se via pânico entre os espectadores de olhos esbugalhados.

De repente, meio aos gritos de calma do apresentador, o macaco conseguia arrebentar a porta da jaula, que batia fortemente nas laterais, e partia para cima do público.

Era um “Deus nos acuda” na plateia. Pânico generalizado. Meninos passando uns por cima dos outros rumo à porta de saída já um tanto congestionada.

Meio a todo esse alvoroço o apresentador tentava acalmar o “monstro” que continuava a se chamar Madame Marly Brando. Aos poucos ele se acalmava e ia lentamente seguindo as ordens do seu “mestre” e voltava para dentro da jaula fechando, ele mesmo, a porta. Pronto. A calma voltava a reinar no ambiente com apenas a metade do público do início do espetáculo.

Aos poucos Madame Marly Brando iria voltar ao “seu corpo” de mulher. Os pelos iam desaparecendo e o “horrível monstro” voltaria ao seu estágio original.

Os poucos que sobravam dentro da jardineira saiam lá de dentro como corajosos que ficaram até o final do espetáculo. Talvez porque já o conhecessem.

Após alguns dias do circo instalado em Monte Carmelo a maioria da garotada da praça dos “beija-flor” já havia assistido àquele espetáculo macabro duas ou três vezes. Eu fui umas quatro para vencer o medo. Na quarta vez já não saia correndo do “monstro” pois sabia “de cor e salteado” o que viria após, e jamais vira um ferido pela “fera” saindo daquela jardineira. Em Monte Carmelo, é claro!

Aquela cortina suja na porta de entrada, aquele ambiente sombrio no interior da jardineira, a decoração macabra e o cheiro do lugar não saíram mais da minha cabeça.

CONVIDADOS

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