Céu de Brasília
por Sandra Filgueiras
18 de maio de 2020
"Céu de Brasília, traço do arquiteto, gosto tanto dela ... " ( *)
Traços retos cortando o espaço em linhas paralelas e transversais delinearam o tempo da menina. Curvas de concreto dando formas aos monumentos moldaram o corpo da moça. Na amplidão do cerrado de árvores tortas enraizou-se a mulher de pensamentos longínquos.
Seguimos juntas, como irmãs, nossa construção. Do barro vermelho nasceu a Esplanada, no centro de tudo, com os Ministérios conduzindo ao Congresso Nacional. O Eixo Monumental, cruzando a cidade, uniu as Asas Sul e Norte. E as Superquadras, dispostas no Leste e Oeste, abrigaram os habitantes daquela cidade sem esquinas, sem bairros, com ruas sem nome, sem ladeiras e sem gente caminhando nas calçadas.
No início, a vida corria debaixo do bloco na Super Quadra. Tinha brincadeira de finca na lama endurecida e de queimada no estacionamento. Pausa para o quebra queixo, vendido na grande caixa de madeira que o ambulante com sua bicicleta anunciava cantando : " olha o quebra queixo" . Tinha jogo de Betty e guerra de carrapicho. Brincadeira de bambolê, rodeando coloridos por todo lado. Corrida de bicicleta e a febre do patins. Toda Super Quadra tinha uma banca de jornais. Ali o encontro diário era para comprar gibis, álbuns e para trocar figurinhas.
E fomos crescendo, com as ruas, viadutos e tesourinhas e carros e movimento. O jogo que envolvia nossos dias agora era o das frutas: pera, uva ou maçã. Da salada nasceu o primeiro beijo, o primeiro namoro. E nesse tempo de sonhos nada era melhor do que ir assistir ao por do sol lá na Ermida Dom Bosco, no final do Lago Sul, onde um céu avermelhado dava vez a noites cobertas de lua.
E depois veio o tempo da universidade e a fase dos botecos com os amigos. O popular era o Sovaco da Cobra que ficava na Asa Norte perto da UnB, onde rolava, toda sexta à noite, muita cerveja fermentando papo sobre política e economia. Muitos bares tinham música ao vivo. O Clube do Choro, era imperdível. Sábado à noite era a vez da boite. A mais famosa era a Kako, no Gilberto Salomão. O barato era ficar rodando o quarteirão, antes de entrar, pra ver se pintava algum paquera ou, talvez, alguma uma nova ilusão. Parecia que todo o nosso mundo girava ali em torno da noite. Todas caras eram conhecidas. E na boite tudo terminava na dança, na lança, no suor e na cerveja.
Viramos então economistas e a carreira promissora era no setor público. Vivemos tempos incertos de inflação espiral. Experimentamos diferentes planos econômicos para exterminar o mal que engolia os salários e transformava a vida em devedora progressiva do tempo. Até que veio a estabilização, com o Plano Real. Era a hora da reconstrução. Mas o sonho foi ceifado pela desilusão. Assaltaram a coisa pública e Ela ficou marcada pela corrupção e pela vergonha.
Agora de longe, depois de muito tempo, Ela me vem ao pensamento coberta de ipês rosa, amarelo e branco, do modo como costumava nos compensar do fardo de suportar, todos os anos, o longo período da seca. Escuto de madrugada o coro alto das suas cigarras anunciando finalmente a chegada da primavera. Sinto o cheiro das primeiras chuvas e da grama cortada. E relembro como a aridez da terra seca dava lugar a um jardim alaranjado pelos flamboyants em flor.
Quem sabe um dia a natureza redentora possa colorir um novo tempo! Quem sabe Ela possa enfim se reconciliar com seu destino! Segundo a profecia de São João Bosco, um dia ali nasceria uma grande civilização, e tal como em terra prometida, nela jorraria leite e mel.
(* ) (Djavan, “Linha do Equador”)