A sétima arte nas terras do Carmo
por Maurício Lúcio Mendes
29 de setembro de 2020

Há muitos anos, em um tempo longínquo de quando as recordações começam a se perder em nossa memória, um ilustre e singular Carmelitano, não raras vezes esquecido nos anais da história, num gesto de magia e ousadia empreendedora, trouxe um pedacinho do Céu para estas Terras do Carmo, o “Cinema”. Este memorável e notável carmelitano não por demais pranteado, foi Saturnino Pinheiro.
Naqueles tempos idos, o entretenimento se dava nas salas e varandas onde as pessoas recebiam as tantas visitas sem avisar; nas reuniões ao entardecer, com as cadeiras expostas nas calçadas defronte as casas ou nos bancos da pracinha, nas festas de casamento, nos eventos religiosos de Nossa Senhora do Carmo e dos Santos padroeiro. Mas a Sétima Arte, nos apresentada por Saturnino Pinheiro, veio mudar a vida de todos os carmelitanos, trazendo-nos uma nova alegria de viver.
Foi sua incrível máquina de projeção cinematográfica instalada com esmero e capricho em um suntuoso prédio na praça central construído especificamente para aquele fim, que proporcionou a todos a transposição da barreira da realidade para o palco das eternas ilusões, porque, até hoje, o cinema é a mais perfeita máquina do tempo. O espectro de luzes multicoloridas projetadas em uma tela branca retangular ainda é a única máquina inventada pelo homem capaz de tornar presente o futuro, e trazer o passado ao presente com detalhes que vão além da imaginação.
O Cinema de Saturnino Pinheiro provocou uma evolução indescritível na cultura e no costume do povo daquelas Terras do Carmo. O glamour daquele edifício bem arquitetado com a sala de recepção ricamente mobiliada, a bomboniere repleta de balas, doces, era realmente uma maravilha, e os bombons envoltos em papel luminescente de cor vermelha brilhante realmente eram um sonho de uma verdadeira valsa. O requinte das poltronas em madeira de lei envernizadas com apreço por artesãos altamente qualificados, os sofás em napa cor de rosa vibrante estofados com botões cobertos com a mesma matiz em estilo dos “anos dourados” se tornaram a cobiça de todos aqueles que admiravam os tantos cartazes dos filmes em exibição, cuidadosamente postados em pedestais que se espalhavam por toda aquela sala nobre.
Mas, todavia, não quero aqui falar só do glamour daquele cinema que deixou saudades, nem da beleza estonteante de Ava Garner, Grace Kelly, Elizabeth Taylor nem de Judy Garland estrelando no filme O Mágico de Óz, e muito menos de Gary Cooper, Charlton Heston, Clarke Gable e nem mesmo de Johnny Weissmuller protagonizando o inesquecível Tarzan. Não quero falar da maravilha intrínseca da Sétima Arte.
Ora me interessa falar de algo muito, mas muito mais sublime do que a própria arte do cinema. Quero falar de uma magia maior que encantou a todos nós na melhor época de nossas vidas. Quero falar do “Escuro do Cinema”.
Dentre todas as maravilhas do Cinema de Saturnino Pinheiro, o seu “Escuro” foi um dos fatores mais marcantes da minha vida, e de muitos dos meus companheiros adolescentes contemporâneos, porque foi naquele “Escuro do Cinema” que experimentei pela primeira vez o calor de mãos trêmulas de uma jovem adolescente que expressou, só para mim naquele momento mágico, os seus primeiros desejos de mulher.
Nenhuma emoção me foi maior naquela época, do que sentir mãos ainda juvenis apertarem as minhas num gesto divino de cumplicidade, e de ficar incontrolavelmente imobilizado quando lábios silenciosos e rubros encontravam os meus naquele “Escuro do Cinema” que era o meu mais fiel comparsa.
Mormente não falávamos absolutamente nada um para o outro porque as palavras ficavam entaladas na garganta envoltas pela emoção do mais nobre de todos os sentimentos, mas, falávamos sobre nós, e sobre tudo ao mesmo tempo por meio do idioma universal dos gestos de carinho. A ternura de mãos entrelaçadas naquele devaneio mágico, por si só, atestava a nossa cumplicidade no afeto mútuo alicerçado na magia da admiração da beleza e do encantamento.
Impossível, pois, é expressar a emoção maior, a emoção do mais puro sentimento da alma, que era a de esperar ansioso no Cinema, que a cadeira ao nosso lado gentilmente fosse, enfim, ocupada pela “alegria de nossos olhos”, a jovem adolescente que desejávamos, e que por meio de um singelo bilhete escrito de forma exitosa, porém com letras cuidadosamente desenhadas em um vulgar pedaço de papel extraído de seu caderno escolar, prometia ali nos encontrar.
Terminada a sessão, o então indesejado clarão das luzes irremediavelmente nos acordava daquele sonho arrancando-nos brutalmente do paraíso, nos transportando para a realidade, e assim, aquelas mãos comprometidas se desentrelacavam em lástimas e pesar, e com ares de verdadeiras almas penadas em nossas faces enrubescidas, como se quiséssemos parar o tempo, íamos caminhando, muito devagar, lado a lado, até ultrapassar os vidros da suntuosa porta de saída daquele Cinema amigo.
Do lado de fora, opção outra não nos restava senão a despedida com sorriso e o brilho do encantamento nos olhos expressando uma ternura indescritível porque, ansiosamente se esperava naquela hora a promessa de um novo encontro, naquele mesmo lugar, no Cinema, onde a “Escuridão” brilhava intensamente mais que o próprio Sol naqueles juvenis corações comprometidos.
Depois da despedida, cheios de orgulho por aquele sublime feito, compilando um trecho de uma música antiga de Vicente Celestino, gritávamos em silêncio, mas para que todo o mundo pudesse ouvir; ”vitória, vitória, tens a minha paixão.”
É por isso, por me lembrar desse tempo maravilhoso, que eu elevo o meu pensamento aos Céus e rogo a Deus para tenha o Saturnino Pinheiro em um bom lugar no paraíso porque, nenhum outro lugar deste mundo, senão o “Escuro do seu Cinema”, foi melhor o mensageiro de tantas promessas de amor.