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A mulher do algodão

por Maurício Lúcio Mendes

09 de julho de 2020

A mulher do algodão

Durante toda a minha infância, era costumeiro ajuntarmos ao pé do fogão de lenha para ouvir histórias de assombração, e depois, com muito medo, tínhamos uma dificuldade imensa para “garrar” no sono.

Mesmo assim, ao cair da noitinha, era só perceber que nossos páis ou avós estavam na cozinha conversando, mesmo sabendo que iríamos “morrer” de medo, íamos nos aproximando para escutar as tais histórias. Em tempos de quaresma era pior ainda. Havia histórias de “mula sem cabeça”, da porca que criava pintinhos, do lobisomem, e, em certa época, a aparição da famosa “Rural Preta”, mas, a pior de todas elas, eu achava mesmo que era a da “Mulher do Algodão”.

Meu saudoso Pai, vulgo “Jesus Teba”, gostava muito de pescar no Rio das Perdizes, duas ou três vezes por semana com seus diletos amigos; o seu compadre Fio do Tatão que era irmão do Gaspar, o Alaor pintor, vulgo “Laor Bisorro”, ou com seu primo Otaviano Ramos (Taviano), filho do João Lucinho.

 Meu Pai possuía uma motocicleta marca Sunbean 500 cc - 1952 e o seu primo Otaviano possuía uma Monark Jawa 250 cc -1959, que era a sua “jóia” de estimação.

No final do expediente, depois das cinco horas da tarde, aparecia lá em casa o Fio do Tatão e o Laor Bisorro com suas varas de pesca e suas “capangas” (embornais com matula, iscas e demais apetrechos de pescaria), e, logo aparecia o primo Taviano acelerando sua Jawa 250.

O Fio do Tatão ia na garupa do primo Taviano, e o Laor Bisorro na garupa da motocicleta do meu Pai, ou vice e versa. Assim, eles aceleravam suas “máquinas” avenida Romualdo Resende abaixo e aprumavam pela Vila Nova afora, tomando rumo ao Cemitério, e daí por diante, rumo ao rio das Perdizes.

Chegando no poço da pescaria, era de costume ficarem até que a noite se adentrasse e, então, quando o medo da escuridão começava a lhes incomodar, recolhiam as varas de pínda, organizavam os apetrechos para voltarem. Entretanto, como sempre, tinham que passar defronte a porta do Cemitério às altas horas, e isso, era-lhes um verdadeiro martírio, principalmente na época da quaresma.

Numa fatídica quinta-feira santa, resolveram ir pescar no mesmo lugar e na mesma hora de costume. Nesse dia, logo na saída, o Fio do Tatão disse ao meu Pai para não voltarem tarde da noite de quaresma porque seria muito perigoso vez que alguém lhe havia avisado que a “Mulher do algodão” estava aparecendo na estrada do Rio das Perdizes nas proximidades do Cemitério.

O mais interessante nisso tudo é que, apesar de adultos, pescadores de uma vida inteira, em verdade, eles também “morriam” de medo de assombração. E aí, eu não sei bem por que, eles insistiam em pescar no mesmo lugar, mesmo sabendo-se que, necessariamente, na volta, teriam que passar defronte ao Cemitério já noite adentro.

Pois bem, ao retornarem da pescada, já avisados da aparição da ”Mulher do Algodão” e com o medo tomando conta, o primo Taviano com o Fio do Tatão na garupa, acelerou sua máquina ganhando uma dianteira naquela estrada de terra repleta de “costelas de vaca” e cascalho solto, que retirava toda a estabilidade da motocicleta.

Considerando que o Fio do Tatão era um homem que pesava mais ou menos uns noventa quilos, e a suspensão da Monark Jawa era muito macia, a velocidade começou a ficar perigosa, e de repente, o primo Taviano travou os freios da “máquina” derrapando-se em uma queda espetacular, jogando-se, os dois, no barranco, e a motocicleta ficou deitada bem no meio da estrada.

A motocicleta do meu Pai era grande e pesada, e vinha desenvolvendo uma velocidade perigosa também para aquela estrada de terra para alcançar o Otaviano, e, considerando, ainda que o farol não era muito bom, ou seja, era péssimo, aliado ao fato de que a “máquina” não possuía os freios dianteiros, impossível foi meu Pai se desviar do acidente ou parar antes, e então, passou por cima da motocicleta do Otaviano, jogando o Laor Bisorro, diga-se de passagem, de pequena estatura física, para cima em mais de dois metros, que logo se esborrachou naquele chão duro coberto de cascalho.

Verificando, no escuro, se alguém estaria seriamente machucado, vez que estavam espalhados, uns sentados e outro deitado naquela poeira imensa, gemendo de dor nas costelas, dos joelhos ralados e dos dedos “destroncados”, meu Pai logo indagou:

- O que aconteceu compadre Taviano?  Por que você derrapou daquele jeito?

 O primo Otaviano, buscando respiração com muita dificuldade logo lhe respondeu:

- Você não viu compadre Jesus?

- Viu o quê compadre Taviano? Indagou novamente meu Pai.

- Você não viu a “Mulher do Algodão” abanando a mão pra mim? Disse-lhe o Otaviano com olhos esbugalhados de medo, e complementou:

- Ela estava logo ali na frente mais para o lado do Cemitério!

Meu Pai, apavorado de tanto medo, tirou a velha lanterna da capanga de couro, colocou as três pilhas, já quase sem energia, e apontou o fraco facho de luz para a direção do cemitério e, diz:

- Compadre Fio do Céu!!! Olha o vulto branco lá acenando pra mim também.

E assim, não restou dúvida de que era mesmo a “Mulher do Algodão”. Bateram-se de joelhos no chão e, em voz alta, juntaram em oração para aquela alma penada, e, depois, não mais viram o vulto porque foi se afastando lentamente como se fosse um lençol esvoaçante rumo ao Cemitério.

Difícil mesmo foi continuar a jornada porque, ambas as motocicletas não mais funcionavam, e tiveram que empurrá-las, passando bem em frente a porta do Cemitério até chegar em casa, já quase meia noite de uma quinta-feira Santa.

Os quatro companheiros passaram muitos meses sem que se aventurassem em uma nova pescaria à noite com medo da “Mulher do Algodão” que lhes havia aparecido naquele dia fatídico.

Muitos se perguntam; o que era mesmo a “Mulher do Algodão”? Ocorre que, naquela época, era comum encherem o nariz do morto com chumaços de algodão para evitar a coriza pos morten, além de amarrar o queixo do defunto/a com um pano torcido envolto na cabeça para que não ficasse com a boca aberta. Realmente era uma cena horrível que comumente se via nos velórios.

A “Mulher do Algodão” era então a alma penada de uma mulher dita, “muito custosa” e que morreu cedo e de forma não muito bem explicada porque tomou muitos maridos de mulheres honestas, e que, em face de seus tantos pecados, não encontrou entrada no Céu e, então, como vingança, envolta por um lençol branco e com as narinas cheias de algodão, passou a assombrar as pessoas, principalmente os transeuntes das proximidades do Cemitério nas noites escuras da quaresma.

Confesso-lhes que tive muito medo desses personagens sombrios das histórias de minha infância querida, e que, por decorrência, confesso-lhes que não tenho medo de onça, nem de cobra, nem de homem valente, mas até hoje, não gosto de ficar sozinho na escuridão porque, tenho um medo danado de assombração.

COLUNA DO MAURÍCIO

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