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O velório da Zefa do Ditao

por Mauricio Lucio Mendes

03 de setembro de 2020

O velório da Zefa do Ditao

Muito antigamente, viúva e com os filhos já crescidos e todos casados, minha saudosa avó paterna Maria Lucia de Jesus, conhecida por Maria “Teba”, morava sozinha em uma pequena casa no início da Rua Tripuy, no Tamboril.

A casinha alicerçada em rústicos esteios de madeira lavrada e pintada de branco era cercada por muito arvoredo, pés de manga, laranja, bananeiras e alguns pés de café frondosos, e, na porta da cozinha, a minha Avó cultivava muitas plantas em latas de dezoito litros que vinham com banha, bem como também cebolinhas e salsas em velhas bacias depositadas em um jirau, por onde eu, meus irmãos e primos brincávamos na aurora de nossa infância.

O terreno era razoavelmente grande, e ao lado, também morava sua filha numa pequena casa, a minha querida tia Violeta Lucia, diga-se de passagem que, com a graça de Deus, ainda vive e goza de boa saúde e lucidez invejável já com noventa e sete anos de idade, que era carinhosamente chamada, pela minha Avó, simplesmente por “Fia”. Aliás, hoje é o dia do seu Aniversário.

Como não havia muita distração naquela época, minha Avó e a minha Tia tinham como entretenimento, o costume de ir a todos os velórios da redondeza. Bastava saber que alguém havia morrido que, imediatamente elas retiravam das “caixas” (baús de madeira utilizado para guardar roupas) os seus vestidos, sempre com a mesma matiz floral – rosas vermelhas, brancas e amarelas em fundo negro ou em verde escuro – e lá iam Elas felizes e de “braço dado”, rumo à casa do velório.

Por lá ficam até altas horas da noite conversando e confabulando com os presentes, só que, morriam de medo da volta pra casa, e até juravam que não mais iriam a outros velórios se Deus e N.S. de Aparecida as protegesse naquela caminhada pelas ruas escuras do Tamboril, Vila Nova, Vila Gaiteira e até mesmo, do distante Alto do Lobo, quando por lá se aventuravam.

Naquela época, era comum os parentes e/ou os amigos dar um banho no defunto, mormente em uma bacia grande acomodada no piso de um dos quartos da casa, e depois de vestido e com as narinas cheia de algodão e com uma mordaça para manter a boca fechada, o morto era então velado na sala, mormente deitado em cima de uma mesa tosca forrada com um lençol até que o caixão “encomendado ao marceneiro” chegasse, e então pudesse o morto nele repousar, de vez, em meio de flores e ramos de adorno colhidos no quintal ou nos jardins dos vizinhos. Imprescindivelmente o velório durava a noite inteira, não importando a hora do falecimento.

Numa tarde de um certo dia de quaresma, minha querida Tia Violeta anunciou que uma tal de Zefa do Ditão havia morrido.

Nesse momento, os olhos da minha Avó brilharam de curiosidade e logo ela indagou:

-Vamos lá Fia? E a Tia Violeta lhe respondeu:

- Vamos não Mãe. É quaresma e disseram-me que a Zefa era macumbeira e está muito “feia” no caixão, uma coisa horrorosa. A Senhora tem muito medo e depois não vai dormir direito. Acho melhor é a gente não ir.

Minha Avó lhe respondeu:

- Deixa de bobagem Fia. Tenho medo nada. Depois, se eu ficar com medo eu durmo na sua casa. Vamos logo. Eu fiz um vestido e novo e já vou me aprontar. E assim, as duas logo se aprontaram e foram felizes e curiosas para o dito velório.

De volta pra casa, a Tia Violeta perguntou à minha Avó se Ela não estaria com medo da Zefa, e lhe disse:

- Mãe, vem dormir aqui em casa. A senhora vai ficar com medo e passar apuros sem necessidade.

Minha Avó lhe respondeu resoluta:

- Liga não Fia. Não estou com medo não, e, eu durmo é com Deus e N.S. da Aparecida.

Pois bem. Logo que as portas se cerraram e o silêncio tomou conta da noitinha, nada de minha Avó apagar a lamparina. O tempo foi passando, passando, e o medo foi lhe apertando até que, num ato de desespero e aflição, Ela gritou:

- Abre a porta Fia, que eu já estou é indo com o colchão na cabeça.

No meio da escuridão, agitada de tanto medo, com o colchão de palha na cabeça, cobertor em uma mão e a lamparina na outra, ao abrir a porta e caminhar rumo a casa da Tia Violeta, a lamparina apagou e então, minha Avó gritou desesperada:

- Abre a porta logo Fia, pelo amor de Deus. A Zefa quer me pegar. Já pegou o colchão e não quer largar de jeito nenhum.

Tia Violeta assustada gritou lá de dentro do quatro:

- Larga o colchão Mãe, e corre que vou abrir a porta.

Assim, minha Avó largou o colchão e os cobertores e veio correndo, tropeçando, cai aqui, e se levanta ali, até que chegou esbaforida à porta que estava entre aberta. Adentrou-se assustada e poro demais ofegante, e logo a Tia Violeta lhe disse:

-Mãe do céu, e agora? Não vamos acender a lamparina de jeito nenhum. Vamos ficar caladas e não fazer barulho. Vamos rezar logo um terço.

Assim, a duas garraram na reza e ficaram acordadas no escuro durante toda a noite, e, todo barulho que se fazia lá fora, elas diziam:

- Meu Pai Eterno e minha N.S. “da” Aparecida, é a Zefa rondando. “Praquê” que nós fomos nesse velório. Hoje é hoje! Se nós passarmos de hoje, é graça de Deus.

E assim, esse sofrimento durou a noite inteirinha.

Ao amanhecer, ressabiadas, as duas medrosas abriram a porta e viram que, em verdade, o colchão havia ficado preso nas farpas de uma lata enferrujada onde havia sido plantado  um pé de “Comigo Ninguém Pode”, e como  danada da lata era pesada demais, o colchão dela não se desgrudou.

O mais interessante deste verídico caso, é que, mesmo sabendo que o colchão realmente é que ficou preso na lada de plantação, mesmo assim, as duas deixaram de ir nos velórios por um bom tempo, e, até os seus últimos dias, minha Avó afirmada “de pés juntos” que, naquele dia, a defunta Zefa do Ditão lhe havia ”colocado mão” porque, no velório, ela havia ficado distraída conversando e rindo demais com as pessoas e se esqueceu de rezar encomendando a sua alma. Foi pura Vingança.

 

 

 

    

COLUNA DO MAURÍCIO

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